REFORMA AGRÁRIA E SUA ATUALIDADE

Raimundo Pires Silva

A Reforma Agrária no Contexto Histórico
A reforma agrária é um conjunto de políticas públicas que visam resolver a questão agrária. As ações de reforma agrária servem para desconcentrar e democratizar a estrutura fundiária, gerar ocupação e renda, ampliar o espectro produtivo e de serviços no meio rural, interiorizar os serviços públicos básicos e essenciais, dinamizar a economia local e promover a justiça social.
Em 30/11/1964 foi promulgada a Lei 4504 – Estatuto da Terra – em resposta às lutas dos movimentos sociais que clamavam por reforma agrária onde exigiam mudanças estruturais na propriedade e no uso da terra no país[1]. Os protagonistas dessa pressão social foram os Sindicatos Rurais e as Ligas Camponesas[2].
Esta lei regula o direito e as obrigações aos bens imóveis, para fins de execução da reforma agrária e da política agrícola. Assegura a todos a oportunidade de acesso a propriedade. Define as categorias de propriedade com minifúndio, propriedade familiar, latifúndio e empresa familiar. Bem como define que todo processo de reforma agrária deve ter a constituição de um Plano, onde se define as áreas prioritárias de intervenção (área reformada como unidade de planejamento). E ainda, que a propriedade está condicionada a uma função social[3].
Nessa lei se conceituou a reforma agrária, como um conjunto de políticas públicas que visam promover a redistribuição da propriedade e do uso da terra mediante a atuação numa base territorial (área reformada ou área prioritária), como também, promover o apoio à produção, a comercialização e a conservação e restauração dos recursos ambientais. E, também, promover a educação, a saúde, a habitação, entre outras políticas sociais, dando condições para que esses novos agentes sociais, habilitados pelo acesso a terra, integrarem no mundo dos direitos e no processo produtivo nacional, e assim, se promover a inclusão social e econômica.
Contudo, esta lei apesar de promulgada nunca foi aplicada e, o espaço rural brasileiro passou por um processo de acumulação denominado de modernização conservadora, cujas transformações resultaram numa agricultura moderna, complexa, diversificada e industrializada, mas também com altas taxas de concentração fundiária e de renda, além de concentração populacional nas cidades (resultante do êxodo rural)[4].

Novo Contexto da Reforma Agrária
A Constituição em 1988, em relação ao Estatuto da Terra significou um atraso, já que recuou sobre a noção da função social da propriedade, como também na intervenção fundiária que deixa de ser numa base territorial (área reformada, como instrumento de planejamento) e passa a ser somente na grande propriedade improdutiva. Como, também, cria outras categorias de propriedade; a pequena, a média e a grande, sendo que somente a grande propriedade improdutiva é passível de ser desapropriada.
Com o estatuto da terra desconstituído não se tem mais um instrumento público para realizar a reforma agrária, pois não se tem mais o arcabouço jurídico para intervir no problema agrário nacional. Com que restou desse aparato legal só se pode intervir através da desapropriação a grande propriedade improdutiva[5]. A partir de então só se pode promover assentamento de forma pontual, por propriedade e não mais por área reformada, passa-se a ser uma intervenção na propriedade e não mais na estrutura fundiária.
A terra continuou sendo concentrada por força da expansão da fronteira e dos interesses agrários tradicionais, como também dos novos interesses agroindustriais. Assim, a questão agrária foi sendo empurrada pela modernidade e pouco se modificando a estruturação das relações sociais e de poder nos níveis regional e local, continuando de cunho claramente autoritário e socialmente predatório (Conceição Tavares, 1999:230)
Contudo, há uma pressão social que se esboça no cenário nacional através dos conflitos fundiários, que se resumem nas ocupações da grande propriedade improdutiva, na luta de posseiros para permanecer na sua terra, nas lutas sindicais dos trabalhadores rurais e nas mobilizações de massa; que estão em todos os momentos recolocando a reforma agrária no contexto das políticas públicas.
No processo de redemocratização do país, a luta dos trabalhadores sem-terra ganharam outro rumo, em vários cantos do território nacional se retomavam a questão do acesso à terra ocupando a grande propriedade improdutiva. A luta social localiza a grande propriedade improdutiva e tenciona exigindo a intervenção do Estado.
Assim, é importante destacar que mesmo num contexto complexo, desigual e de exclusão social e econômica que se expressa a questão agrária, a luta e as mobilizações sociais por terra e conseqüentemente suas conquistas inserem os assentamentos rurais no território brasileiro. Portanto, os assentamentos são resultantes da combinação entre a luta social e a intervenção fundiária do Estado. É uma intervenção fundiária que tem como objetivo somente amenizar uma tensão social num dado local.
Porém o assentamento rural, mesmo não centrado num processo de reforma agrária nacional, mas como política pública possuiu um valor estratégico no campo do desenvolvimento com justiça social, pois se constituiu num espaço rural que possibilitou produção, moradia, lazer e cidadania a um contingente significativo de trabalhadores que não tiveram nenhuma perspectiva de inserção produtiva na sociedade urbana moderna.
Os assentamentos trouxeram, no seu horizonte, algumas alternativas sociais e econômicas para parte da população brasileira que se encontrava marginalizada e excluída do processo de produção vigente. Foram se formando como uma política de inclusão social e são um estímulo alternativo em contraposição ao desemprego, absorvendo os excedentes populacionais decorrentes do crescimento da produtividade no interior dos complexos agroindustriais e da falta de emprego na cidade.
Há que se destacar que mesmo com a massificação dos assentamentos até os dias de hoje, a questão agrária foi se conformando, isto é, o êxodo rural converte o excedente populacional rural em excedente urbano.
E ainda, permanecem no território rural nacional: o latifúndio improdutivo, as terras públicas (federais e estaduais) griladas e os posseiros não titulados. Alem disso, constata-se que pequenos proprietários e trabalhadores rurais são expulsos do campo por processos de concentração fundiária, de centralização de capitais e de especulação imobiliária, que estão em grande número reforçando o contingente de sem-terra ou de desempregados na cidade.
Há também que destacar que o imbróglio das populações quilombolas e indígenas não foram até agora resolvidas. Os territórios dessas comunidades estão sendo seriamente ameaçados pelo avanço do agronegócio, baseados na concentração de terras, monocultivos extensivos e intensivos. Eles têm o direito de nas suas terras/territórios preservar a sua história, religião e seus conhecimentos.
Tal situação se aguçou com a mais recente estratégia do agronegócio, que ganhou espaço pelo fato de se compor com o ajustamento da economia brasileira aos ditames do setor externo e da competitividade com a abertura econômica. Este ajuste prescindiu da força de trabalho e da massa de agricultores familiares não integrados nesse processo industrial de acumulação (a grande maioria).
Em resumo, ao longo desse período teve como cenário rural a seguinte equação: o não uso da força de trabalho e da ociosidade da terra.
Nos anos 90, observou-se no meio rural a transição da modernização conservadora para o regime de liberação econômica e desmontagem do aparato de intervenções do Estado no setor. O desenvolvimento econômico da agricultura já não é um projeto político prioritário na agenda do governo e tampouco o é na da indústria. Agora a prioridade está no setor externo (Delgado, 2001:14/15).

Atualidade e os Desafios da Reforma Agrária
Nos dias de hoje o cenário da economia rural está cada vez mais protagonizado pela presença do capital internacional no comando das cadeias produtivas do agronegócio. As grandes corporações internacionais há anos controlam a circulação (jusante e montante) das commodities (café, milho, soja), livres de quaisquer restrições relativas às políticas públicas nacionais. Mais recentemente, no setor do açúcar e álcool, vem ocorrendo um processo brutal e acelerado de concentração, guiado pelo capital estrangeiro, com apoio público no campo do financiamento, da infra-estrutura e da logística (transporte/circulação). Esse novo momento de acumulação e de concentração do capital acentua o desemprego, portanto, a ociosidade da mão de obra e da terra.
O processo de internacionalização também vem ocorrendo na propriedade da terra. A terra enfrenta um novo momento de especulação do capital. Algumas empresas internacionais vêem na aquisição de terra em outras nações a forma de assegurar a soberania alimentar do seu país de origem. A terra é patrimônio dessa nação, portanto, o controle de seu domínio e uso é fundamental para nossa soberania fundiária, mas esse controle público não existe de forma efetiva. Não há um cadastro dominial e de uso público das propriedades com base num georreferenciamento. Como não há um cadastro, não há um controle público. Nossa soberania fundiária está “em cheque”.
Outro ponto que se apresenta e se adiciona na questão agrária do mundo rural é o conceito crítico da natureza/terra como bem inesgotável a ser explorado até a exaustão. Assistiu-se nesse país a exploração de seus recursos naturais (solo, água, vegetação) de uma forma intensiva, extensiva, concentradora, em prejuízo do interesse comum, criando situações, em determinadas regiões, de devastação total dos recursos ambientais que pesarão sobre gerações futuras. Estamos enfrentando um momento de risco para manutenção de nossos recursos ambientais e para o futuro de nossa sobrevivência. Tal situação vem reafirmar os valores éticos de restaurar, conservar e preservar os recursos naturais, e nesse contexto, colocá-los como um bem público.
Porém toda essa soma de dificuldades pode ser revertida mediante a ação do Estado concertada com a sociedade, que deverá ser susceptível a um resultado que ocupe os recursos ociosos; a força de trabalho e a terra, e por outro lado garanta a restaurar, a conservar e a preservar os recursos naturais, a fim de fazer com que a propriedade cumpra a função social.
Este é o desafio da reforma agrária que está posto para dias de hoje e, precisa ser compreendido e respondido – a terra como um bem público.
Isto significa que o uso da terra deve estar centrado no interesse público e ter um controle social. Para se construir esse caminho há que se estabelecer um sistema de relações entre o homem e o uso da terra, capaz de conservar o meio ambiente, promover a justiça social e o desenvolvimento do país.

[1] Nessa época a realidade agrária consistia na alta concentração fundiária e de renda, na heterogeneidade e a complexidade do sistema produtivo convivendo com baixas condições de vida de parte significativa dos pequenos produtores familiares e dos empregados rurais.
[2] As ligas camponesas representaram a luta por terra de posseiros contra donos de engenho, em Pernambuco, das quais merece destaque a do Engenho de Galiléia. Esse movimento ganhou expressão nacional na luta por reforma agrária.
[3] O estatuto da terra definia a função social da propriedade a partir de 4 princípios: produtividade; trabalho; preservação ambiental; e bem estar.
[4] Para uma síntese didática desse assunto, ver capítulo 1 de Graziano (1996).
[5] Assim, a expressão latifúndio passou a definir, por força de Lei, uma propriedade mal aproveitada, ou seja, grande propriedade improdutiva (Stédile, 1999:165/166).


Referências bibliográficas
1.        Caio Prado, JR: O problema agrário brasileiro. Reforma Agrária. São Paulo, nº6, ano VII, novo/dez, 1977.
2.        Conceição Tavares, M: Destruição não criadora – memórias de um mandato popular, contra a recessão, o desemprego e a globalização subordinada. Rio de Janeiro/São Paulo. Editora Record, 1999.
3.        Delgado, GC: Expansão e modernização do setor agropecuário no pós guerra – um estudo da reflexão agrária, 2001 – mimeo.
4.        Graziano, JS: A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas. Unicamp/IE, 1996.
5.        Rangel, IM: A questão agrária brasileira. Recife. Condepe, 1961.
6.        Stedile, JP: O latifúndio. In Sader, E (org) Sete pecados do capital. Rio de Janeiro. Record,1999.

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