FOME, DESPREZO E HIPOCRISIA


Leonam Bueno Pereira[1]

Recentemente, o jornal Valor publicou matéria com o Sr. Jacques Diouf, Diretor Geral da FAO (Organização para Agricultura e Alimentação) órgão da Organização das Nações Unidas –ONU (Valor de 15/03/11 pág. B13). Chamava a atenção o dirigente da organização sobre o recrudescimento da fome no mundo, especialmente a partir da crise financeira de 2008.

O professor Luiz Gonzaga Beluzzo em recente artigo para o site Carta Maior (www.cartamaior.com.br, 11/03/11), intitulado a “Financeirização da Fome”, chamou a atenção sobre o papel que capitais extremamente voláteis e especulativos jogam no mercado, migrando de ativos para outros conforme a sua perspectiva de ganho e assim, transformam também o mercado de commodities agrícolas, especialmente grãos, em ativos de especulação financeira.

A Academia de Cinema de Hollywood na recente premiação dos melhores filmes do ano houve por bem premiar o documentário “Trabalho Interno” (inside job) que trata, com frieza, de como algumas autoridades, professores universitários e executivos de finanças trataram e ainda tratam fatos e eventos graves que desembocaram na crise financeira de 2008, inclusive comprometendo os empregos e as moradias de milhares de norte americanos.

Essas três referências citadas acima, cada uma a sua maneira, são a ilustração clara e cristalina do título deste artigo. Seu significado e sua explicação.

Pode-se enumerar uma série de razões, muitas delas de profunda importância, para explicar a revolta da população mulçumana dos países do Oriente Médio e do Norte da África (Tunísia, Egito, Iêmen etc.), países estes comprometidos com a “pax americana”. No entanto, é necessário separar algumas conveniências explicativas dos analistas, principalmente da imprensa, das delicadas e complexas estruturas sociais e suas relações políticas ali existentes. Por exemplo: quase ninguém na imprensa tradicional brasileira se deu ao trabalho de informar a população de que esses países surgiram de composições políticas tribais em que o monopólio da violência está nas mãos de uma nobreza e que, o Estado, enquanto um agente social, político e econômico apartado dos interesses individuais, ali praticamente não existe. Talvez a honrosa exceção seja o Egito, principalmente porque Nasser, depois da 2ª Guerra, tratou de consolidar um Estado Laico, capaz de exercer o monopólio da violência.

Descuram também esses analistas de que nesses países a distribuição de renda é concentrada e que a renda do petróleo é uma renda que não é apropriada pela nação, mas pela casta que detém o poder. Esquecem também de explicar que esses países não têm produção agropecuária que sustente sua população. Dessa forma, em algum momento, alguém poderá desvendar essa caixa preta dos países produtores de petróleo e colocar o exato significado da segurança alimentar no mesmo nível da soberania nacional. O Sr. Diouf chegou perto de apontar isso com suas palavras.

Agora vejam vocês! “Tudo que é sólido se desmancha no ar ...”. Os alimentos mesmo aqueles comercializados em bolsas, como os grãos em Chicago, tinham até recentemente, o comportamento de seus preços, mesmo erráticos e especulativos, ainda assim associados ao complexo produtivo e aos estoques reguladores existentes, em geral administrados pelo Estado. A desregulamentação dos mercados promovida pela onda neoliberal proporcionou transformar as mercadorias físicas, concretas, em fictícias. Transformaram os alimentos em ativos financeiros. Papéis garantidores de uma suposta safra. Recebíveis e Direitos de curto e médio prazo sobre estoques e cargas de grãos e alimentos passaram a ser, eles mesmos, a principal mercadoria a ser comercializada. Torná-la atraente ao mercado, pagando diferenciais de preços entre sua compra e sua venda, passou a ser o principal objetivo da comercialização desses ativos e não a demanda pela alimentação e o seu consumo. A tragédia disso tudo é essa elevação de preços dos ativos financeiros que representam os alimentos contaminarem o processo físico do mercado.

Ou seja, em uma das pontas desta história, onde se situam os produtores de alimentos, por incrível que pareça no Brasil globalizado, a produção de alimentos é de responsabilidade direta de 84% dos imóveis rurais sob controle de agricultores familiares (cerca de 4,1 milhões de produtores), surge a seguinte dúvida: quem vai pagar o custo mais alto? Ora, mesmo com a tecnologia aumentando a produção e reduzindo os custos de produção, será o consumidor (a outra ponta desta história) que pagará mais caro pelo alimento. Financeirizar os alimentos é desprezar a importância e o significado da alimentação para o ser humano. Foi assim com as hipotecas das moradias que lastrearam as sub-prime.

Às vezes, mesmo uma indústria extremamente comprometida com o status quo, se recente e se envergonha com os atos e falcatruas de seus pares. Premiar o “Trabalho Interno”, segundo alguns analistas foi reconhecer a maldade existente no país das maravilhas. Pode até ser verdade que a “academia” reconheceu os homens maus de Wall Street, mas com certeza, apenas expor a maldade em um filme não será capaz de abalar ou modificar a visceral perversidade e hipocrisia que reside no modus operandis dessa turma.


[1] Economista, mestre em economia agrícola e agrária pelo IE – Unicamp.

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