ESTADO, SOBERANIA E O DESEVOLVIMENTO

Raimundo Pires Silva


Este arrazoado busca contribuir para a compreensão do Estado nacional[1] contemporâneo e sua soberania – de seu passado, de seu presente e de seu futuro. É uma análise enxuta e genérica que aborda a herança recebida pelo governo Lula, as transformações realizadas por este e as propostas para sua consolidação.
Para compreender a consolidação do Estado moderno no Brasil tomaram-se como base as obras de Décio Saes e Jacob Gorender que afirmaram: o Estado nacional brasileiro foi de 1822 até 1888, um Estado escravista moderno e se transformou em Estado burguês após a proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891. Para ele a revolução de 1930, foi um dos momentos fundamentais da consolidação do Estado burguês moderno no país. Os anos de 1888/1889 e de 1930 são decisivos para compreendermos o processo de constituição do Estado capitalista no Brasil e suas limitações.
O estado burguês[2] é um conjunto de instituições organizadas segundo as normas que pode unificar os agentes de produção no Povo-Nação e, assim, neutralizar a tendência dos trabalhadores a se constituírem em classe social. Ou por outra: pode definir os agentes da produção como indivíduos iguais na condição de habitantes de um mesmo espaço geográfico, o território nacional e, ao fazê-lo, combater a constituição da classe explorada através da afirmação do Povo-Nação.
Os elementos que formam Estado nação são: o território, o povo e a soberania[3]. No entanto, é a soberania que constitui elemento determinante entre os três, pois começando por ela decide-se, em última instância, a ocupação do território e afirmar a identidade de um povo como nação. 
No que se refere ao desenvolvimento até 1930 consolidamos a indústria de consumo mais simples e, nos 50 anos subseqüentes copiamos o aço, a eletricidade, a química básica, o petróleo, o automóvel, os eletrodomésticos, e até máquinas mais sofisticadas. Levamos cem anos, de 1830 a 1930, para imitar a inovação fundamental da Primeira Revolução Industrial, o setor têxtil. E noventa anos, de 1890 a 1980, para copiar os avanços da Segunda Revolução Industrial[4].
Assim, assistimos nesse período como um todo um padrão de acumulação, que na história do desenvolvimento econômico e social do país pode ser chamado mais apropriadamente de processo industrial.
Nesse contexto histórico, a partir da década de 30, o Estado brasileiro foi se transformando num organismo estruturante, preocupando-se com o desenvolvimento do processo industrial e material do país, formulando políticas setoriais de industrialização, um inteligente manejo da política econômica e institucionalizando a organização dos mercados de trabalho.
As condições para a implantação da indústria pesada (bens intermediários, notadamente químicos, siderurgia e metalurgia pesada) só amadureceu por volta dos anos 50, onde vislumbrava: um processo de concorrência das economias centrais, que deu ensejo a uma expansão do capital em direção à periferia capitalista, como no caso do Brasil e, o Estado assumiu um papel preponderante na implantação de segmentos relevantes da indústria pesada, e ainda, no investimento em infra-estrutura. Forma-se a partir desses anos um tripé entre o capital estatal, o capital externo e o capital privado nacional, que se constituíram num bloco de inversões, que configura o processo de desenvolvimento industrial e urbano do país.
No que tange ao meio rural, nos anos 70, a agricultura consolida um padrão de modernização e de inserção no comércio internacional, sendo que, esta modernização esteve apoiada na tecnificação e mecanização do latifúndio, na expansão do crédito subsidiado, na aquisição de insumos modernos, cuja oferta foi ampliada no período.
Tal processo aguça a questão agrária nacional que se resumia no não emprego no campo e na cidade, o que resultou uma população sobrante e migrante fora do processo de trabalho. A acelerada urbanização, resultante do êxodo rural, somada ao descaso público para com a questão social fez piorar o péssimo grau de distribuição de renda até então praticado no país, que afetou tanto os inseridos no mercado de trabalho como os não incorporados.
Segundo o professor Wilson Cano (1993) o Estado, nesse período, foi estruturante, impôs políticas econômicas necessárias ao avanço da industrialização e modernização conservadora da agricultura, ainda ampliou o volume de comércio exterior, aproveitando-se da expansão do comércio externo.
Nos anos subseqüentes até hoje, o Estado nacional se defrontou com uma economia transnacional, isto é, houve um rompimento de fronteiras da economia, da sociedade e da cultura que tinham sido erigidas sobre as bases do território nacional, desde século XIX. Mais ainda, houve um desequilíbrio na circulação econômica, um desmonte das tradições que tinham sido elaboradas dentro das fronteiras do território nacional.
O poder do financeiro, da produção, do controle tecnológico e do mercado ficou a cargo e a depender cada vez mais das empresas e dos bancos transnacionais, dificultando o poder dos países subdesenvolvidos, como o Brasil. Como consequência, ocorreu à retirada do Estado do desenvolvimento e se conformou no país políticas de corte neoliberal. Pode-se acrescentar o constrangimento do capital, na forma do fechamento dos financiamentos externos provenientes dos países desenvolvidos. Os processos de acumulação de capital dos países centrais nos impingiram abertura econômica, abrandamento à regulação sobre investimentos externos, inclusive dos financiamentos oficiais (FMI, BID, BIRD).
Nesse momento histórico, com os governos de Collor e de FHC, o país viveu um processo de consolidação de um projeto neoliberal, com mudanças profundas no Estado.
Essa estratégia foi indissociável da agenda proposta pelo chamado Consenso de Washington: abertura comercial completa, desregulamentação geral da economia, reconhecimento irrestrito da patente, privatizações, Estado mínimo com a desarticulação dos mecanismos de apoio ao crescimento e regulação econômica, flexibilização dos direitos trabalhistas sempre orientados para estabelecer a primazia absoluta do mercado. Esse processo foi acompanhado pela ofensiva ideológica da inevitabilidade das reformas, modernização e globalização como parte do pensamento único construído na pretensa racionalidade do mercado[5].
Apesar, do processo de integração externo que foi brutal, ideológico e rápido, a sociedade permanecera conservadora, malgrado a modernidade urbana e a parte do setor rural que caminhou para a modernização. A persistência das elites em não permitir a reforma agrária e o atraso na modernização adequada do campo agravou o êxodo rural para as cidades, potencializando o crescimento urbano, causado tanto pela manutenção do atraso quanto pela modernização conservadora.
Nesse curto e recente momento histórico, anos 80 até 2002, o Estado nacional esteve inserido num novo cenário mundial que pôs em risco a nossa autodeterminação, ou seja, o país perdeu a capacidade de tomar decisões internas, seu poder de decisão ficou diluído em macros organizações transnacional. Essa nova forma de sociedade ficou caracterizada pela globalização das atividades econômicas e a racionalidade do mercado.
No terceiro ano deste século XIX, o país encontrava-se por um lado numa situação histórica, que completara mais de cem anos, e que estava marcada por imensas transformações, sendo que no último período manteve elementos de ruptura com que estava em curso, com a conformação do Estado mínimo e com nossa soberania subordinada a globalização. Por outro lado o advento do governo de Lula faz com que o Brasil retomasse o papel do Estado no estímulo ao desenvolvimento e no planejamento em longo prazo, tendo característica central a combinação do crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais.
Ao longo desse governo[6], o crescimento do produto interno bruto acelerou, o número de famílias abaixo da linha de pobreza decresceu e milhões de pessoas ingressaram na classe média, isto é, na economia formal e no mercado de consumo de massa. A aceleração do desenvolvimento econômico e social foi alcançada com manutenção da estabilidade macroeconômica, ou seja, com controle da inflação, redução do endividamento do setor público e diminuição da vulnerabilidade das contas externas do país diante dos choques internacionais.
No campo internacional o país passou a ocupar um novo e relevante lugar no mundo. Foi sendo convidado para as reuniões do G8, a integrar o G20 financeiro e o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China, grupo de países emergentes), além de estar na origem do G20 da OMC (Organização Mundial do Comércio), isto tudo, a participação do país mudou a lógica das negociações comerciais do mundo. A política externa compreendeu que o interesse nacional não pode existir separado da posição que o país busca ocupar em um mundo assimétrico e complexo. Houve um entendimento de que a política externa não poderia ser apenas um instrumento de projeção dos interesses nacionais no cenário internacional, mas que nossa inserção no mundo, sobretudo na região, teria uma incidência decisiva sobre nosso projeto nacional de desenvolvimento[7].
Sendo assim, foi se estabelecendo uma articulação entre o externo e o interno, como elementos constitutivos da soberania, se contrapondo a uma política neoliberal até então vigente.  


BIBLIOGRAFIA                                                                                                              
1.        Nelson Barbosa & José Antonio Pereira de Souza – A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda. In Emir Sader & Marco Aurélio Garcia (orgs) Brasil entre passado e o futuro. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo: Boi Tempo, 2010.
2.        Emir Sader – Brasil, de Getúlio a Lula. . In Emir Sader & Marco Aurélio Garcia (orgs) Brasil entre passado e o futuro. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo: Boi Tempo, 2010.
3.        Marco Aurélio Garcia – O lugar do Brasil no mundo: a política externa em um momento de transição. . In Emir Sader & Marco Aurélio Garcia (orgs) Brasil entre passado e o futuro. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo: Boi Tempo, 2010.
4.        Bavaresco, A – A crise do Estado nação e a teoria da soberania em Hegel. In Dotti, J E et al Estado e a política de Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.
5.        Aloísio Mercadante – Plano real e o neoliberalismo tardio In Aloísio Mercadante (org) O Brasil pós-Real, a política econômica em debate. Campinas, SP: UNICAMP.IE, 1997
6.        Wilson Cano – Para uma política de resgate do atraso do Brasil na década de 90. In Economia e Sociedade.Revista do Instituto de Economia da UNICAMP,            nº 2, agosto            de 1993.
7.        João Manoel Cardoso de Mello – Consequências do neoliberalismo. In Economia e Sociedade.Revista do Instituto de Economia da UNICAMP,                nº 2, agosto            de 1993.
8.       Décio Saes - "O Conceito do Estado Burguês" in Estado e Democracia: Ensaios Teóricos.


[1] Um conceito válido de Estado para todas as sociedades divididas em classe (escravista ou feudal ou capitalista): é a organização especializada (o poder especial de repressão) na função de moderar a luta entre as classes antagônicas, garantindo por esse modo a conservação da dominação de classe, ou, por outro o conjunto das instituições (mais ou menos diferenciadas, mais ou menos especializadas) que conservam a dominação de uma classe por outra (Décio Saes).
[2] Defini-se o Estado burguês como aquele que cria as condições ideológicas necessárias à reprodução das relações de produção capitalista, na medida em que desempenha uma dupla função: individualizar os agentes da produção (proprietário/trabalhador) e neutralizar a tendência do trabalhador à identidade de classe (ação coletiva).
[3] O conceito de soberania indica o poder de mando numa sociedade. Ela é a racionalização do poder de fato em poder de direito (Bavaresco, 2003).
[4] De acordo com o professor João Manuel Cardoso de Mello (1993).
[5] Aloizio Mercadante (1997).
[6] Ver em Barbosa et AL (2010)
[7] Segundo o professor Marco Aurélio Garcia (2010).

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[José Juliano de Carvalho Filho; Lançamento do Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos; Câmara Municipal de São Paulo 07/12/2010].

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